DESCANSO PARA LOUCURA: Conto: O resgate das falsas onças

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sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Conto: O resgate das falsas onças


Conto premiado no evento: Prêmio Graciliano Ramos de Literatura Nordestina 2006-07, realizado pela Secretaria Municipal de Cultura de Palmeira dos Índios - AL. Em âmbito regional – Nordeste.
  
Borboletas (fauna e flora).

A realidade é mesmo cruel, massifica a todos de uma forma ou de outra, pois os elementos potencialmente capazes de suprir as necessidades humanas são inúmeros: emocionais, materiais, simbólicos e tantos outros especificamente ligados a cada pessoa ou a cada realidade singularizada. 

O mercado nos oferece inúmeras chances e possibilidades de consumir, nos inclui numa eterna e viciosa massa de pessoas consumistas, estereotipadas, rotuladas e sem o mínimo e o necessário de autonomia. Torna nossa vida e nossos objetos descartáveis, sempre substituíveis, inclusive nosso caráter e nossos comportamentos. Com isso, a verdade e a validade das coisas e até das pessoas são costumeiramente postas em questionamento, em dúvida e sempre se requer o máximo de recursos para fazer valer certas atitudes ou situações. 

O homem civilizado, inerente ao mercado, aprendeu a fabricar objetos que se dizem úteis e necessários que nos seduzem quando são jogados no comércio e daí nos influenciam infernalmente através da propaganda e do “marketing” e nos fazem adquiri-los, mesmo sem as mínimas possibilidades e condições financeiras.  Por outro lado, o homem na civilização, porém excluído dela, hipócrita, sem escrúpulos e noutra perspectiva “solidário” com os pobres, acaba falsificando certos objetos, enfim tudo, para assim popularizar e fazer com que todos possam os adquirir, até os miseráveis, para que fiquem a vida toda atrelados ao mercado e afogados em dívidas, todavia, “deste modo se igualam”.

Hoje em dia, tudo que você imaginar pode ser falsificado, desde o mundo dos vivos, até o mundo dos inanimados. São feitos com material suscetível ao desgaste, fracos em resistência, de uma forma ou de outra falsificados: roupas, calçados, CDs, DVDs, acessórios, aparelhos elétricos, domésticos, móveis...  e até pessoas. Sim, pessoas! Aquelas que aparentam ser o que de fato não o são ou aquelas que “se igualam” e acompanham o mercado e seus lançamentos, se esquecendo de olhar para seus gostos verdadeiros e menos influenciados. Além desses é falsificado o dinheiro, o tal elemento fundamental na troca de mercadorias essenciais e também banais.

A maioria dos homens e das mulheres trabalha em troca de objetos, em troca de dinheiro e grande parte desta maioria em troca de sobrevivência. 

Mostrarei então o caso de José: homem humilde, rústico, com disposição para todo tipo de trabalho, pois ele tem a responsabilidade e a necessidade de sustentar sua abundante família: uma mulher – a Maria- que faz do lar a labuta diária e os filhos em crescimento e em fase de consumo. José trabalha para sustentar-se e sustentar sua família e essencialmente por dinheiro, mas às vezes, aceita outros elementos em troca das atividades que exerce.  É um homem que concorda com quase tudo, exceto com a condição de não colaborar e seguir a vida segundo os preceitos éticos e morais, portanto, zela por uma vida regrada pelo bem comum, pelo seu bom senso e pela responsabilidade. Ele acha que é melhor trabalhar desesperadamente e sem descanso e assim sobreviver dignamente, do que, por exemplo, se apossar das coisas dos outros, sejam elas de grande ou de pequeno valor, sem permissão ou direito, o que consiste no que os homens chamam de roubo. O roubo deva ter sido inventado, criado e alimentado, exclusivamente, pelos poderosos, quando desde antigamente até os dias atuais e os que virão, abarcam extremas porções de riquezas e deixam bilhões de necessitados sem expectativa, sem opções, sem nada.

Ultimamente a família de José está bem, feliz e satisfeita, ele trabalhou desde o início do mês e está prestes a receber o tão aclamado pagamento pela força de trabalho gasto.

Que bom! José recebeu seis onças pela força de trabalho que gastou, já que, consequentemente realizou atividades para um empregador. Ótimo! Ele vive numa região pouco habitada, com clima propício e estas seis onças serão de extrema utilidade para sua sobrevivência e a de sua família.  

Uma vez que eu tenho certeza e José também que, qualquer pessoa, seja no mercado das transações comerciais, seja até numa casa de família em pleno jantar, aceitarão uma das suas onças ou até mesmo as seis, a depender do que ele desejar ou precisar adquirir “dando-as” em troca.
Onça pintada brasileira.


Mas, José, assim como tantos outros trabalhadores se decepciona muito. Hoje, por exemplo, ele foi ao mercado e a feira livre, procurava comprar uma saca de farinha, a necessidade era extrema, uma vez que, a farinha é o principal acompanhamento do feijão no almoço de milhões de famílias simples e essas ainda são “privilegiadas”, pior são as que não conseguem comprar nem a farinha e nem o feijão, imagine como poderão “vender o caráter” de boa conduta! A miserabilidade, a pobreza, a falta de saúde e educação e tantas outras precariedades são abundantes, são também profecias certas e obrigatórias para os políticos, estes verbalizam sempre a erradicação de tais situações prejudiciais, mas não erradicam na prática, nem poderiam, senão ficariam sem um bom nível de “discurso político”. 

A decepção de José foi porque na hora em que foi efetivar a transação, isto é, a troca, ele se lembrou que precisava de duas em vez de apenas uma saca de farinha, pois uma ele já devia ao seu vizinho mais próximo e era obrigado a repor o empréstimo. E por que ele não comprava farinha por quilo? Não, assim arriscaria passar ainda mais fome. Com a saca já em casa era garantia de alimento por mais tempo, enquanto durasse aquela maior quantidade, ou seja, a saca de farinha. 

Então, o proprietário temporário das farinhas, isto é, o atravessador, interrogou José, sobre qual forma de pagamento compensaria as sacas de farinha que pretendia comprar. O mesmo ainda acrescentou que faria um “precinho” menor do que o dos demais vendedores. 

José, entusiasmado, sem se dar conta que estava numa situação de pré decepção afirmou “consciente” que daria em troca das duas sacas de farinha uma das suas onças, novinha de conserva, com pouquíssima circulação, extremamente valiosa quanto a tradição que ela possui e de um fascínio terrível para todas as pessoas, sejam crianças, adultos ou idosos.
Papagaio de cara roxa.


Imediatamente o vendedor pensou, mas... não aceitou somente isto, uma simples onça! Disse que apenas uma onça era pouco, por mais bela, valiosa e fascinante que fosse e por todo o desejo de consumo que despertava, fosse em um caçador que a quisesse para – com ela - comprar outros mantimentos para a família, fosse em um empresário poderoso, cheio de grandeza e  “impossibilitado” de ajudar, que com ela e talvez com outras colocasse um belo tapete em seu suntuoso escritório, para exibir sua superioridade sobre o resto dos homens pobres ou até mesmo sobre a natureza. O vendedor exigiu, portanto, a onça e também um papagaio. Papagaios são menos valiosos, mas para muitos são até inacessíveis, "inconquistáveis", trabalhosos para se conseguir. 

José decepcionou-se cronicamente e até falou em tom alto com o vendedor de farinhas. Ele definitivamente desabafou que não era fácil conseguir uma onça para trocar por duas sacas de farinha, afinal trabalhou o mês inteiro, de sol a sol para conseguir as seis. Pior seria se desfazer de uma e ainda arrumar um papagaio, teria, portanto, que trocar outra onça por papagaios! É extremamente difícil consegui-los, deve-se trabalhar muito, mais muito mesmo, dedicar-se ao trabalho e se esquecer da própria espontaneidade.
Beija-flor.

     

E quando eu for comprar as demais coisas? Pensou. Pedirão, talvez, outras onças, ou uns peixes exagerados e extremamente difíceis de conseguir, ainda mais do que as onças, ainda mais do que os micos-leões-dourados porque estão em extinção ferrenha e tornam-se pouco vistos, porém suscetíveis à captura. Ou tartarugas, especificamente se forem marinhas. Nem mesmo as garças são fáceis de conseguir, são vistas muitas, tanto nas estações quentes quanto nas frias, mas adquiri-las é outra coisa e até mesmo os beija-flores, que chegam a tocar e “cheirar” as rosas em nossos jardins, mas assim não estão em nossas mãos, não são nossos e é muito difícil preservá-los em mãos.
Tartaruga marinha.

Com isso, José se deu conta que, para ter tais recursos que representam a troca por outras mercadorias é preciso preservarmos os mares e os rios; conservarmos as matas; plantarmos flores e rosas ao redor das nossas casas e assim constituirmos jardins e termos beija-flores. E ainda, protegermos os lagos e reflorestarmos a terra além de limparmos todo o ambiente. Portanto, com isso teríamos tartarugas-marinhas, peixes, onças, papagaios, e beija-flores, além de micos-leões-dourados ou simplesmente “macaquinhos”, sem contar nas garças brancas, constituição de átomos brancos que sobrevoam nossas essências, se assim fossem tornadas símbolos.
Garoupa.

    

A decepção de José resume-se e justifica-se porque ele trabalhou o mês inteiro e em troca recebeu seis onças, aparentemente valiosas. As onças, os peixes, os papagaios, os macacos, as garças, tartarugas, aves e até os que não têm a figura de animal, mas são simbolicamente valiosos e podem ser trocados por outras mercadorias, sempre se apresentam como tesouros valiosíssimos e extremamente necessários, isto é um fato! 

A esposa de José, dona Maria, tentou consolar o pobre homem injustiçado, dizendo que era assim mesmo, geralmente não se conseguia trocar o que se tinha pelos objetos e utensílios dos outros, sempre foi assim, tem que haver um consenso de ambas as partes, alguém trocava aquilo que se tinha com abundância enquanto o outro não o tinha, esse outro, respectivamente, “ofertava” aquilo que possuía em grande quantidade.
Garça branca grande.



José, mergulhado ainda mais na falta de autonomia, no obscurantismo da liberdade, tomou uma drástica decisão. Novamente foi à feira, decidiu trocar todas as suas seis onças valiosíssimas e fantásticas, as quais carregava escondidas, pois à vista despertariam o interesse de todos, inclusive daqueles que sequer trabalham o mês inteiro. 

É verdade que os trabalhos que José realizava não eram os piores, mas sempre requeriam, além da específica e exigente concentração mental, uma extrema força física, capaz de deixar as mãos e os pés grossos, dignos de uma pintura tal qual o “Abaporu.” 

Na feira, ele não só decepcionou-se, como também sofreu calúnias, foi acusado das piores coisas e se sentiu um ninguém, nem mesmo era mais um trabalhador assalariado, era algo medonho, fraudulento, pior que os piores alienados. Sim, pois achava que o trabalho lhe garantia ser um homem valoroso, honesto e verdadeiro cidadão, mas sempre esteve enganado, porque o trabalho não livre aliena também os valores assim como desmerece a condição humana, quando esse trabalho é forçado e só dá lucro ao capitalista. 

Simplesmente as onças não foram aceitas no pagamento da importante compra que José fez, foram, portanto, confiscadas. Sequer foi o IBAMA que realizou tal ação, foi um simples caixeiro de um supermercado que as confiscou.  Chamou a Polícia e acusou José, afinal ele era o portador daquelas onças! Alegou que José portava de objetos que possuíam apenas inverdades. Como pôde considerar falsas aquelas onças perfeitas de José? Afinal elas possuíam tudo que as outras possuíam! 

José foi então impedido de continuar com as onças e o delegado alegou que elas seriam encaminhadas para uma instância superior, para o local de onde saem as verdadeiras e fascinantes onças. José manifestou-se, já que poderia perdê-las e então exigiu onças verdadeiras, se é que as dele eram indignas de verdades! Mas, o delegado disse que simplesmente ele as perdeu. Como assim? Perguntou-se. Perderia também um mês de serviços trabalhados e não alimentaria sua família? 

Saiu alucinado e revoltado da delegacia, pensou em beber todas para não pensar no que havia perdido, porém, ainda conservava alguns valores e preferiu ir para o aconchego da família. E lá chegando só sabia se lamentar à sua esposa. José então, disse a ela e aos filhos que ao redor estavam, que a vida era realmente cruel, mas por outro lado havia se dado conta que essa vida é bem mais que o trabalho exacerbado que tira toda a nossa força e nos remete tão pouco. Como é difícil! – exclamava -, trabalhamos a vida toda, alienados, ferozmente aniquilados, impedidos de sonhar, porque quase todos não são possíveis de realizar.

Ingenuinamente, José achava que era bem remunerado, que o que ganhava era o valor justo por todas as atividades que realizava. Enganado sempre esteve, agora se dava conta - ao menos hoje - que o que o empregador paga é somente o suficiente para sobrevivermos, renovarmos parte da força para podermos gastá-la no dia seguinte e pior é quando, ao chegarmos em casa, nos damos conta que todo aquele valor que nos “pagou” o mês inteiro de sacrifício e labuta, na verdade,  é como neve que derrete e jorra ao Sol forte, além do que evapora; é como a escuridão perante a luz, não rende, se esvai. Esse pagamento não serve como deveria servir, não satisfaz. 

Continuou a dizer a sua esposa que aquelas lindas e cobiçadas onças que recebera como pagamento eram ilusão, eram manutenção da maquinaria humana de forma fictícia. 

-Ai Maria, eu pobre alienado, que preciso viver e manter outros, os quais, sem verbalizar amo, não poderia ter sido tão maltratado e enganado. É preciso ter cuidado, você viu Maria, aquele valor, o “tesouro” que recebi por trabalhar deveria ter avaliado antes de receber, ter preservado mais, o protegido, já que  existem outros que os querem, desejam sem que tenham direito, esses são mais alienados do que eu, não por trabalharem bem mais  e receberem menos, pelo contrário, verdadeiramente porque esses sequer vendem a força de trabalho, são portanto inúteis, estão à margem da sociedade e vivem numa alienação como uma espécie de comichão, que faz deles seres que desejam, mas não lhes facilitam meios de alcançar tais desejos.  

José só não chorava porque era homem forte e apesar de tudo, daria a volta por cima e continuaria a sobreviver. Todavia, deleitava-se em decepções, injustiças, pois o governo não “arranca os cabelos” quando roubam-lhe bilhões de reais, mas conosco é diferente, por isso não temos nada e por que viríamos a ter?
E ainda comentou que as “pobres onças” que recebeu pelos trabalhos do mês foram inúteis, inválidas:
Açucenas: jardim próprio.

-Minha querida, você as viu, eram lindas, fofas, ainda continham cheirinho de natureza e um pouco, ou um tanto de industrialização. Encantavam, eram valiosas e refletiam muito interesse e cobiça, por isso o medo de os alienados, ainda mais que eu, as roubarem.  Por causa disso, as quis preservar por alguns dias. No entanto, as influências eram imensas, as necessidades constantes, os interesses e os artifícios do mercado nos obrigaram a trocá-las por alimentos, roupas, calçados, enfim, objetos que nos suprissem nossa sobrevivência.  Portanto, se não fossem as duras necessidades eu as preservaria, as via crescer, eram onças maravilhosas, possuíam um cheiro particular, incontestável, reconhecível por qualquer um, aquilo que eu poderia chamar de um cheiro felino, atrativo, de uma ação fugitiva, circulante, que não se contentam em ficar presas, não querem dono permanente, são livres e proporcionam liberdade, mas às vezes, acorrentam para sempre, levam o ser humano ao declínio, ao desespero, a perdição e até à morte, eis a força e o poder dessas  onças e de qualquer outro elemento animalesco. 

Ficou cabisbaixo, pensativo e novamente desabafou: 

-Realmente Maria, a perda foi cruel, tudo porque minhas “verdadeiras” onças eram falsas e o tal do Banco Central as resgatou, elas foram apreendidas e por isso Maria, estamos sem mantimentos, sem alimentação e é doloroso ver uma lágrima cair do rosto de um filho. Vamos passar fome, pois nós só tínhamos aquelas onças. Os peixes são extremamente difíceis de conseguir e os micos-leões-dourados, que ainda por cima estão à míngua? Será que um papagaio ou uma garça? Não, tentaremos uma tartaruga ou quem sabe um beija-flor! 

-Pensando bem Maria, a partir de agora, plante flores e rosas cheirosas ao redor de nossa humilde casa, para que o perfume delas seja lançado para todos os horizontes e assim podermos atrair, ao menos, beija-flores.   

-E se o dinheiro não nos suprir, certamente a beleza nos suprirá!


JaloNunes.

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